Os escribas da Antiguidade escreveram muitos relatos épicos sobre esse homem incomum, dizendo:
O que está escondido do homem ele viu.
Ele até trouxe notícias dos tempos antes do dilúvio;
Ele fez a longa viagem, fatigante e difícil.
Regressou e, numa coluna de pedra, gravou sua labuta.
Com um entusiasmo bem compreensível, os diretores do museu enviaram George Smith ao sítio arqueológico específico para procurar os fragmentos que faltavam. Contando com uma boa dose de sorte, Smith encontrou-os em número suficiente para reconstruir o texto e adivinhar a seqüência correta das tábulas. Em 1876, ele mostrou, de maneira conclusiva, a seqüência, e publicou um livro sobre o assunto, The Chaldean Account of the Flood. (O Relato Caldeu Sobre o Dilúvio). Pelo estilo dos textos, Smith concluiu que eles tinham sido "compostos na Babilônia a cerca de 2000 a.C.”
De início, George Smith leu o nome do rei que procurou Noé como Izdubur e sugeriu que ele não devia ser outro senão o herói-rei bíblico Nemrod. Por algum tempo os estudiosos aceitaram essa idéia e referiam-se a esse conjunto de doze tábulas como "A Epopéia de Nemrod". No entanto, novas descobertas e pesquisas posteriores estabeleceram a origem suméria da lenda e o verdadeiro nome do herói da história: GIL.GA.MESH. Confirmou-se a partir de outros textos históricos, inclusive as Listas de Reis Sumérios, que esse homem fora governante de Uruk - a Arac da Bíblia por volta de 2.900 a.C. A Epopéia de Gilgamesh, como essa obra literária da Antiguidade atualmente é chamada, nos leva para quase 5 mil anos atrás.
É preciso conhecer a história da cidade de Uruk para captar a abrangência dramática da epopéia. Confirmando as narrativas bíblicas, os registros históricos da Suméria também relatavam que, depois do dilúvio, a realeza - dinastias reais - começou em Kish e daí foi transferida para Uruk em resultado das ambições de Irnini/Ishtar, que não gostava de seus domínios distantes da Suméria.
De início, Uruk era apenas a localização de um recinto sagrado, onde ficava uma Morada (templo) de An, o "Senhor do Céu", construída no alto de um enorme zigurate chamado E.AN.NA ("Casa de An”). Em suas raras visitas à Terra, An acabou desenvolvendo um carinho especial por Irnini e concedeu-lhe o título de IN.AN.NA - a "Amada de An" (mexericos muito antigos insinuam que esse amor não era meramente platônico) -, instalando-a no Eanna, que antes permanecia sempre desocupado.
Mas adiantava para Inanna ter uma cidade sem habitantes, um reino sem súditos? Não muito longe dali, ao sul, nas margens do golfo Pérsico, Ea vivia em semi-isolamento na cidade de Eridu, onde mantinha-se a par dos assuntos humanos, dispensando conhecimento e civilização à Humanidade. Sedutora e perfumada, Inanna fez uma visita a Ea, seu tio-avô. Embriagado e apaixonado, ele atendeu aos desejos da sobrinha: tornar Uruk o novo centro da civilização suméria, a sede da monarquia, em substituição a Kish.
Para levar a cabo seus planos grandiosos, cujo objetivo final era sua entrada no Círculo Interno dos Grandes Doze Deuses, Inanna/Ishtar procurou o apoio de seu irmão, Utu/Shamash. Enquanto nos dias antes do dilúvio a miscigenação entre os Nefilim e as filhas dos homens causava a ira dos deuses, a prática já não era reprovada.
Sendo descendente do grande deus Shamash por parte de pai, e filho da deusa NIN.SUN, Gilgamesh era considerado "dois terços deus, um terço humano". Por isso, recebera o privilégio de ter seu nome escrito com o prefixo "divino".
"Conseguirei olhar por cima da parede?", perguntou a Shamash. "Será esse também meu destino?” Evitando dar uma resposta direta - talvez por ele mesmo não sabê-la -, Shamash tentou fazer Gilgamesh aceitar sua sina, fosse qual fosse, e gozar a vida enquanto podia:
A aquinhoaram com a morte.
A vida retiveram para si.
Festeja dia e noite!
De cada dia faze uma festa de regozijo.
Dia e noite canta e dança!
Que tuas vestes estejam sempre imaculadas,
Lava a cabeça; banha-te em água.
Dá atenção ao pequeno que pega tua mão,
Deixa tua esposa deliciar-se em teu colo;
Pois este é o destino da Humanidade.
Mas Gilgamesh recusou-se a aceitar sua sina. Afinal, não era dois terços divino e só um terço humano? Por que a parte mortal, menor, e não o elemento divino deveria determinar seu destino? Andando de um lado para o outro durante o dia e inquieto à noite, Gilgamesh tentou manter-se jovem intrometendo-se na vida de recém-casados, insistindo em manter relações sexuais com a noiva antes do marido. Então, uma noite, teve uma visão que sentiu ser um presságio. Correu para a mãe e relatou-lhe o que acontecera, pedindo-lhe que interpretasse a visão:
Durante a noite, tendo ficado excitado,
Vaguei de um lado para o outro.
No meio (da noite) surgiram presságios.
Uma estrela tornou-se cada vez maior no céu.
Tentei levantá-lo; era pesado demais para mim.
Enquanto tentava soltar o objeto, que deve ter se enterrado profundamente no solo, "o populacho atirou-se sobre ele, os nobres o cercaram". A queda do "artesanato de Anu" aparentemente foi observada por muita gente, pois "toda Uruk juntou-se em torno dele".
Os "heróis" - os homens fortes - ajudaram o rei em seus esforços para deslocar o objeto. "Os heróis o pegaram por baixo e eu puxei-o pela parte dianteira.”
Embora o objeto não esteja completamente descrito nos textos, com toda a certeza não era um meteoro qualquer, mas um objeto manufaturado, digno de ser chamado de artesanato do grande Anu. Tudo indica que o leitor antigo não necessitava de maiores elaborações por estar familiarizado com o termo ou com o desenho do objeto, talvez algo como está mostrado num antigo selo cilíndrico real.
Apertei com força a parte de cima.
Não consegui retirar a tampa nem levantar o Ascensor...
Com um fogo destruidor, no topo eu o rompi e entrei em suas profundezas.
Levantei a parte móvel
Aquela que Puxa para a Frente
E trouxe-a para ti.
Gilgamesh estava certo de que o aparecimento do objeto era um presságio dos deuses sobre seu destino. Sua mãe, a deusa Ninsun, contudo, teve de desapontá-lo. O que desceu do céu como uma estrela, falou, prevê a chegada de "um robusto camarada que salva; um amigo que virá para ti... ele é o mais poderoso da região... jamais te abandonará. Esse é o significado de tua visão".
Desejando domesticá-lo, os nobres de Uruk contrataram uma prostituta. Enkidu, que até então só conhecera a companhia de animais, readquiriu seu elemento humano ao fazer amor com a mulher várias vezes. Depois disso, a prostituta levou-o para um acampamento na periferia da cidade, onde lhe foram ensinados a língua, as maneiras de Uruk e hábitos do rei. "Contenha Gilgamesh, seja um adversário a sua altura!", disseram os nobres a Enkidu.
À medida que os dois se tornavam amigos inseparáveis, Gilgamesh revelou a Enkidu seu temor do destino de um mortal.
Ao ouvir isso, "os olhos de Enkidu encheram-se de lágrimas, enfermo ficou seu coração, amargurado suspirou". Depois, disse ao amigo que havia um jeito de ele esquivar-se de sua sina, forçando sua entrada na Morada dos Deuses. Lá, se Shamash e Adad o apoiassem, os deuses poderiam lhe dar a condição de divindade a que tinha direito.
A "Morada dos Deuses", contou Emkidu, ficava na "Montanha dos Cedros". Ele a descobrira por acaso, contou, enquanto vagava pelos territórios inóspitos com seus amigos animais. O local, contudo, era guardado por um terrível monstro chamado Huwawa:
Quem, meu amigo, pode escalar o céu?
Só os deuses, indo ao lugar subterrâneo de Shamash.
Os dias da Humanidade são numerados, nada alcançaram senão o vento.
Mesmo tu tens medo da morte, apesar de teu poder heróico.
Portanto, deixe-me ir a tua frente, que tua boca me diga:
Infelizmente, a tábula que contém o texto em questão está quebrada e perderam-se as linhas que contêm a resposta do deus. Todavia, ficamos sabendo que "quando Gilgamesh examinou seu presságio... lágrimas escorreram pelo seu rosto". Aparentemente ele recebeu permissão de ir em frente - mas por sua conta e risco. Gilgamesh decidiu prosseguir e lutar contra Huwawa sem o auxílio do deus. "Se eu fracassar", disse, "o povo se lembrará de mim. Gilgamesh, dirão, tombou lutando com o feroz Huwawa." E continuou: "Mas, se eu tiver êxito, obterei um Shem, "o veículo com o qual se atinge a eternidade".
Enquanto Gilgamesh ordenava a produção de armas especiais para lutar contra Huwawa, os conselheiros de Uruk tentaram dissuadi-lo da empreitada. "Ainda és jovem, Gilgamesh", por que se arriscar a encontrar a morte numa aventura imprevisível, "onde não sabes o que conseguirás?" Reunindo todas as informações disponíveis sobre a Floresta de Cedros e seu guardião, alertaram o rei:
Atendendo ao pedido, "Ninsun entrou em sua câmara, vestiu o traje que assenta em seu corpo, o adorno que assenta em seu colo... pôs a tiara". Em seguida, ergueu as mãos em prece para Shamash - e colocou todo o ônus da aventura sobre ele: "Por que, tendo me dado Gilgamesh como filho", disse, falando retoricamente, "tu o dotaste de um coração inquieto? E agora tu o influenciaste a empreender uma longa jornada, ao lugar de Huwawa!" Dito isso, Ninsum pediu a proteção do deus para o filho:
Até ele atingir a Floresta de Cedros.
Quando a população da cidade soube que seu rei iria mesmo ao Local de Aterrissagem, "aproximou-se dele", desejando-lhe sucesso. Os conselheiros foram mais práticos: "Deixa Enkidu entrar a tua frente; ele conhece o caminho... na floresta, que ele penetre nas trilhas de Huwawa... o que vai à frente, salva teu companheiro!" Eles também invocaram as bênçãos de Shamash. "Que Shamash te conceda teu desejo; o que tua boca falou, que ele mostre aos teus olhos; que ele abra para ti o caminho barrado, a estrada revele para teus passos, a montanha descerre para teus pés!”
Ninsun disse algumas palavras de despedida. Virando-se para Enkidu, pediu-lhe para proteger Gilgamesh: "embora não tenhas saído de meu ventre, aqui te adoto pata guardares o rei como teu irmão!" Em seguida, colocou seu emblema no pescoço de Enkidu.
E os dois amigos partiram para sua perigosa aventura.
A quarta tábula da Epopéia de Gilgamesh é dedicada à jornada dos dois amigos pela Floresta de Cedros. Infelizmente ela está tão quebrada que, apesar da descoberta de fragmentos paralelos em língua hitita, é impossível montar-se um relato coerente.
Está claro, todavia, que eles viajaram por muito tempo, dirigindo-se para oeste. De tempos em tempos, Enkidu tentava persuadir Gilgamesh a desistir da empreitada. Huwawa, ele falou, pode ouvir uma vaca caminhando a 60 léguas de distância. Sua "rede" alcança longe; seu rugido reverbera do "Lugar Onde é Feita a Subida" até Nippur. Uma fraqueza se apodera de quem se aproxima dos portões da floresta. "Voltemos", rogou; mas o rei estava irredutível.
À montanha verde os dois chegaram.
Suas palavras foram silenciadas.
Eles se imobilizaram.
Parados, contemplaram a floresta;
Olharam a altura dos cedros,
Olharam a entrada da floresta.
Onde Huwawa costumava se mover, retas eram as pegadas, um canal flamejante.
Eles contemplaram a Montanha dos Cedros,
Morada dos Deuses,
A Encruzilhada de Ishtar.
Quem seria esse "homem" - "o mais belo do país" - que tirou Gilgamesh de sob o solo desbarrancado? O que seria aquele "olhar dominador" que acompanhara o deslizamento do talude? Enkidu não encontrou respostas. Cansado, virou-se e adormeceu. Porém, mais uma vez a tranqüilidade da noite foi perturbada.
No meio da vigília, o sono de Gilgamesh terminou.
Negando que acordara Gilgamesh, Enkidu deixou-o convencido de que "um deus passara por ali". Intrigados, os dois adormeceram, só para serem novamente acordados. E foi assim que Gilgamesh descreveu o que viu:
A visão que tive foi espantosa!
Os céus gritaram, a terra rugiu.
Embora o alvorecer se aproximasse, veio a escuridão.
Relâmpagos cintilaram, uma chama se ergueu.
As nuvens se avolumaram; choveu morte!
Então o fulgor desapareceu; o fogo apagou.
E tudo o que caíra transformou-se em cinzas.
Pela manhã, os dois amigos tentaram penetrar na floresta, tomando cuidado para evitar "as árvores-arma que matam". Enkidu encontrou o portão do qual falara. Mas, ao tentar abri-lo, foi atirado para trás por uma força invisível, que o deixou paralisado durante dez dias.
Quando voltou a se mexer e falar, Enkidu rogou a Gilgamesh: "Não entremos no coração da floresta". Este, contudo, tinha boas notícias para o amigo. Enquanto ele dormia, recuperando-se do choque, encontrara um túnel. Pelos sons que ouvira dentro dele, tinha certeza de que estava ligado ao "recinto onde são dadas as palavras de comando". Então disse a Enkidu: "Venha, não fique aí parado, meu amigo, desçamos juntos!”
Gilgamesh devia estar certo, pois os textos sumérios afirmam que:
Penetrando na floresta,
A morada secreta dos Anunnaki ele abriu.
Parece, pelos fragmentos de texto, que Huwawa conseguia se armar com "sete capas". Mas, quando chegou à cena, "só uma ele vestia". Vendo nisso sua oportunidade, os dois amigos tentaram preparar-lhe uma armadilha. Quando o monstro virou-se para enfrentar os intrusos, o raio mortal que lhe saía da cabeça desenhou uma trilha de destruição.
No momento oportuno, chegou socorro dos céus. Vendo a situação em que se encontravam os dois amigos, "dos céus falou o divino Shamash". Avisando-os para não tentarem fugir, aconselhou: "cheguem bem perto de Huwawa". Então o deus convocou uma hoste de ventos rodopiantes "que bateram nos olhos de Huwawa" c neutralizaram seu raio. Como Shamash pretendia,
- "Os raios desapareceram, o brilho toldou-se.
- Logo o monstro estava imobilizado: "ele não conseguia ir nem para a frente nem para trás".
- Foi então que Gilgamesh e Enkidu o atacaram: Enkidu golpeou o guardião, Huwawa, fazendo-o cair ao chão.
- Os cedros ao longo de uma distância de 2 léguas estremeceram,
- tão fragorosa foi a queda do monstro. Então Enkidu "matou-o".
Mal sabia Gilgamesh que o desejo de uma mulher logo faria sua vitória desmoronar...
Aquele lugar, como esclarecido anteriormente na epopéia, era "A Encruzilhada de Ishtar"; a deusa costumava usar esse Local de Aterrissagem. Ela, como Shamash, devia ter assistido à batalha talvez de sua Câmara Celestial ("alada"), como mostrado num selo hitita. Vendo Gilgamesh despir-se e banhar-se, "Ishtar levantou os olhos para a beleza de Gilgamesh".
Aproximando-se do rei, ela não mediu palavras para expressar o que lhe passava pela mente:
Conceda-me o fruto de teu amor.
Recitando a lista dos homens com quem Ishtar se deitara, Gilgamesh recusou seus favores. Furiosa com a ofensa, a deusa pediu a Anu para mandar o "Touro do Céu" para esmagar o rei.
Atacados pelo Monstro Celeste, Gilgamesh e Enkidu esqueceram-se do objetivo de sua missão e correram para se salvar. Ajudando-os a fugir na direção de Uruk, Shamash permitiu que "cobrissem a distância de um mês e quinze dias em apenas três dias". Porém, na periferia da cidade, à beira do rio Eufrates, o "Touro do Céu" os alcançou. Quando ele "resfolegou", dois fossos abriram-se no solo, grandes bastante para conter duzentos homens cada. Enkidu caiu num deles, mas conseguiu saltar para fora e matou o monstro.
Não se sabe ao certo o que era o "Touro do Céu". O termo sumério - GUD.AN.NA - também podia significar "o atacante de Anu", ou seja, seu míssil cruzador. Os artistas da Antiguidade, fascinados com o episódio, freqüentemente retratavam Gilgamesh ou Enkidu lutando com um touro de verdade, com Ishtar (e às vezes Adad) assistindo. Mas, a partir do texto da epopéia, fica claro que a arma de Anu era um engenho mecânico, feito de metal e equipado com duas pinças (os "chifres"), que, segundo a descrição, eram "fundidos de trinta minas de lápis-lazúli, cada um deles com um revestimento com dois dedos de espessura".
Alguns desenhos mostram um "touro" mecânico desse tipo descendo dos céus.
- "chamou os artífices, os armeiros", para ver o monstro mecânico e desmontá-lo. Então, triunfantes, ele e Enkidu foram prestar homenagem a Shamash.
Enquanto os deuses deliberavam, Enkidu foi acometido de um coma. Aflito e preocupado, Gilgamesh "andava de um lado para o outro diante do divã" onde seu amigo jazia, imóvel. Lágrimas amargas escorriam-lhe pelas faces. No entanto, apesar da tristeza que sentia pelo companheiro, seus pensamentos só giravam em torno de sua constante ansiedade. Um dia, tal como Enkidu, ele também ficaria à beira da morte? Depois de tantos esforços, teria o fim de um mortal qualquer?
Ele estará vestido como uma águia.
Pelo braço te conduzirá.
"Siga-me" (dirá); ele te levará
À Casa da Escuridão.
À morada acima do solo;
À morada onde os que entram jamais saem.
Uma estrada da qual não existe volta;
Uma casa cujos moradores são privados de luz,
Onde têm poeira na boca
E barro é seu alimento.
Ouvindo a sentença dada ao seu amigo, Gilgamesh teve uma idéia. Não muito longe da Terra das Minas, tinham-lhe informado, ficava a Terra dos Vivos, um lugar para o qual os deuses levavam os humanos que recebiam a dádiva da eterna juventude.
Como Anu e Enlil, eles são servidos de carnes temperadas,
De odres, água fresca lhes é servida.
E assim foi que "o senhor Gilgamesh decidiu partir para a Terra dos Vivos". Anunciando a Enkidu, agora recuperado, que o acompanharia em pelo menos parte da viagem, explicou:
Oh, Enkidu,
Mesmo os poderosos fenecem, encontram o fim fatídico.
(Portanto) nessa terra entrarei,
Montarei meu Shem.
No lugar onde os Shem têm sido erigidos,
Eu um Shem erigirei.
Se na terra desejas entrar,
Assim alertado, Gilgamesh ofereceu um sacrifício a Utu e suplicou seu consentimento e proteção:
Na terra desejo entrar;
Seja meu aliado!
Na terra que se alinha com os frescos cedros
Desejo entrar, seja meu aliado!
Nos lugares onde os Shem foram erigidos,
Que eu erija meu Shem!
- "a poeira das encruzilhadas será teu domicílio, o deserto será tua cama... espinhos e gravetos esfolarão teus pés... a sede assolará tuas bochechas".
- "As lágrimas de Gilgamesh ele aceitou como oferenda; sendo misericordioso, mostrou misericórdia".
Segundo os relatos, eles navegaram descendo o golfo Pérsico, sem dúvida pretendendo dar a volta na península Arábica e depois subir pelo mar Vermelho até o Egito. Todavia, a ira de Enlil não demorou a cair sobre eles. Afinal, Enkidu não fora avisado que um homem "anjo" o pegaria pelo braço para conduzi-lo à Terra das Minas? Como então estava navegando com o irrequieto Gilgamesh numa galera real, acompanhado de cinqüenta homens armados?
Ao entardecer, Utu - que deve ter assistido com grande preocupação à partida dos dois amigos - "foi embora de cabeça erguida". As montanhas ao longo da costa distante "tornaram-se escuras, sombras espalharam-se sobre elas". Então, "parado ao lado da montanha", havia alguém que, como Huwawa, podia emitir raios "dos quais nada escapava": "Ele parecia um touro da grande casa da Terra". Tudo indica que se tratava de uma torre de vigia. Esse "touro" ou vigia assustador deve ter interpelado o barco e seus passageiros, pois Enkidu foi tomado pelo medo. Voltemos para Uruk, suplicou. Mas Gilgamesh não lhe deu atenção. Mandou que o barco fosse dirigido para a terra, determinado a lutar com o vigia - "aquele homem, se for um homem, ou deus, se for um deus".
Nesse instante, houve uma calamidade. O "tecido de trama tripla" - a vela - rasgou. Como que empurrada por uma mão invisível, a galera virou e logo afundou. Gilgamesh e Enkidu conseguiram nadar até a praia. Ao olharem para o mar, viram a embarcação naufragada com a tripulação ainda em seus postos, os cinqüenta homens parecendo incrivelmente vivos na morte:
No fim de tarde em que o barco Magan tinha afundado,
Depois de o barco, cujo destino era Magan, ter afundado,
Dentro dele, como ainda criaturas vivas,
Estavam sentados aqueles nascidos de um ventre.
Os dois amigos passaram a noite na praia desconhecida discutindo sobre que caminho deveriam tomar. Gilgamesh continuava determinado a atingir a "terra". Enkidu achou melhor voltarem à "cidade" - Uruk. Logo, porém, Enkidu foi tomado de fraqueza. Gilgamesh exortou-o a agarrar-se à vida. "Meu querido e débil amigo", chamou-o carinhosamente, "eu o levarei para a terra". No entanto, "a morte, que não faz distinções", não pôde ser evitada.
Gilgamesh lamentou a perda do amigo por sete dias e sete noites, "até que um verme saiu de seu nariz". De início, começou a andar sem rumo:
- "Por seu amigo, Enkidu, Gilgamesh chora amargamente enquanto vagueia pelo mato... com tristeza na barriga, temendo a morte, vagou pelo mato".
Então sua determinação em escapar da sina dos mortais novamente se fortaleceu.
- "Devo descansar minha cabeça dentro da terra e dormir pelo resto dos anos?", gritou a Shamash. "Permita que meus olhos contemplem o sol, que eu me encha de luz!" Determinando seu curso pelo movimento do sol, "para a Vaca Selvagem, para Utnapishtim, filho de Ubar-Tutu, ele tomou a estrada".
- "Quando atingiu um desfiladeiro durante a noite, Gilgamesh viu leões e sentiu medo.”
- "À noite, enquanto dormia, ele acordou de um sonho" que interpretou como um presságio de Sin avisando-o de que iria "regozijar-se na Vida"; encorajado, Gilgamesh "como uma flecha desceu para o meio dos leões".
Ao alvorecer, Gilgamesh atravessou um desfiladeiro. Lá embaixo, a distância, avistou uma grande extensão de água, como um enorme lago, "impulsionado por longos ventos". Na planície junto a esse mar interior, avistou uma cidade protegida por uma muralha. Lá ficava o templo de Sin.
- Agindo de maneira bem compreensível, a cervejaria "trancou a porta, barrou o portão".
Agora, cervejeira, qual é o caminho...
Acontece que a escolha não era assim tão simples, pois o mar que Gilgamesh tinha diante de si era o "mar da Morte".
A cervejeira disse a ele, Gilgamesh:
Faz muito tempo que ninguém vem do outro lado do mar.
O valente Shamash o atravessou
Mas, não sendo Shamash, quem pode atravessá-lo?
Trabalhosa é a travessia, desolado o caminho;
Estéreis são as Águas da Morte que ele contém.
Como então, Gilgamesh, pretendes atravessar o mar?
Gilgamesh,
Existe Urshanabi, o barqueiro de Utnapishtim.
Com ele estão as coisas que flutuam,
Na mata ele recolhe as coisas que colam.
Vá, deixa-o contemplar teu rosto.
Se for adequado, contigo ele atravessará;
Senão, tu voltarás.
Então Gilgamesh chegou a TIL.MUN - "A Terra dos Vivos".
"Que caminho deverei tomar agora?", perguntou Gilgamesh. Urshanabi disse-lhe que ele teria de chegar a uma montanha: "o nome da montanha é Mashu".
As indicações do barqueiro constam nas versões hititas da epopéia, encontradas em fragmentos de tábulas descobertas em Boghazkoy e outros sítios arqueológicos. A partir deles, como reunidos por Johannes Friedrich em Die hethitischen Bruchstükes des Gilgamesh-Epos, ficamos sabendo que o rei foi avisado para encontrar e seguir "um caminho regular" que levava para o "Grande Mar, que fica bem distante". Deveria procurar por duas colunas de pedra, ou "marcos", que, como garantiu Urshanabi, "ao destino sempre me trazem". Ao encontrá-las faria uma curva para alcançar uma cidade chamada Itla, dedicada ao deus que os hititas denominavam de Ullu-Yah ("O das Montanhas"). Só com a bênção desse deus ele poderia prosseguir em sua jornada.
À montanha de Mashu ele chegou;
Onde diariamente observava os Shem
Que iam e vinham.
As funções do monte exigiam que ele se conectasse tanto com os céus como com os Confins da Terra:
Lá no alto, à Faixa Celestial
Havia um meio de se entrar no monte. No entanto, a entrada, "o portão", estava fortemente guardada.
Homens-foguete guardam seu portão,
Seu terror é espantoso, seu olhar é morte.
Seu temido farol varre as montanhas.
Eles vigiam Shamash enquanto ele sobe e desce
- "Ao contemplar o brilho terrível, Gilgamesh cobriu o rosto; recobrando a compostura, aproximou-se deles."
- "O que vem tem o corpo de carne dos deuses!"
Por causa de Utnapishtim, meu antepassado,
Eu vim.
A ele que se juntou à congregação dos deuses,
Sobre a vida e a morte desejo perguntar.
- "O portão do monte está aberto para ti!”
As vinhas belas demais para se contemplar.
A folhagem é de lápis-lazúli;
As uvas, luxuriantes demais para se olhar,
De... pedras são feitas...
Suas... de pedras brancas...
Nas águas, juncos puros... de pedras-sasu;
Como uma Árvore da Vida e uma Árvore de...
Aquela feita de pedras An-Gug.
Até agora não se sabe o que aconteceu em seguida, pois toda uma coluna da nona tábula de argila está fragmentada demais para ser decifrada. Quer seja no jardim artificial ou em algum outro lugar, Gilgamesh finalmente encontrou-se com Utnapishtim. Sua primeira reação ao ver um "homem de antanho" foi reparar o quanto era parecido com ele:
Então, Gilgamesh foi direto ao assunto:
Todavia, quando sua raiva diminuiu, Enlil conscientizou-se da vantagem dessa sobrevivência. Foi então, continuou contando Utnapishtim, que o deus lhe concedeu a vida eterna:
Segurando-me pela mão, levou-me a bordo.
Ele levou minha mulher a bordo e a fez ajoelhar-se ao meu lado.
Em pé entre nós, nossas testas tocou para nos abençoar:
Até aqui Utnapishtim tem sido humano;
Daqui em diante, ele e sua mulher serão como deuses para nós.
Longe daqui Utnapishtim residirá,
Na foz dos rios.
Urshanabi, o barqueiro, foi chamado para levar Gilgamesh de volta. No entanto, no último instante, quando o rei já estava para partir, Utnapishtim revelou-lhe mais um segredo: embora ele não pudesse escapar da morte, havia um meio de evitá-la. Para isso, teria de obter a planta secreta que os deuses comiam; assim, se manteria eternamente jovem!
A planta, ficamos sabendo pelo que aconteceu em seguida, crescia submersa:
Enquanto voltava com Urshanabi, o barqueiro, Gilgamesh disse-lhe, triunfante:
Urshanabi,
Esta planta é única entre todas as plantas:
Com ela, um homem pode recuperar o pleno vigor!
Eu a levarei à cidade fortificada de Uruk,
Onde a planta será cortada e comida.
Que ela seja chamada
Homem Torna-se Jovem na Velhice!
Desta planta comerei e a minha juventude voltarei.
O destino, contudo, como aconteceu em tantos casos durante os milênios e séculos que se seguiram, interveio.
- "Uma cobra cheirou o perfume da planta. Chegou e levou a planta embora".
As lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto.
Ele pega a mão de Urshanabi, o barqueiro.
Para quem minhas mãos trabalharam?
Para quem esgotei o sangue de meu coração?
Para mim não obtive a dádiva;
a uma serpente, a dádiva concedi...
Um outro selo cilíndrico sumério ilustra o trágico final da epopéia: o portão alado ao fundo, Urshanabi conduzindo o barco e Gilgamesh lutando com a serpente. Não tendo encontrado a imortalidade, ele agora é perseguido pelo anjo da morte.
E foi assim que, nas gerações que se sucederam, escribas copiaram e traduziram, poetas recitaram e contadores de história transmitiram o relato sobre a primeira busca infrutífera da imortalidade, a Epopéia de Gilgamesh.
E era assim que ela começava:
E assim, segundo as Listas de Reis Sumérios, foi como tudo terminou:
- O divino Gilgamesh, cujo pai era humano, o alto sacerdote do templo, reinou por 126 anos. Ur-lugal, filho de Gilgamesh, reinou depois dele.
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