03/02/2013

Zecharia Sitchin - A Escada Para o Céu: CAP. 7 - Gilgamesh: O Rei Que Não Queria Morrer

A lenda suméria sobre a primeira busca da imortalidade de que se tem notícia fala de um governante muito antigo, que suplicou ao seu divino protetor para deixá-lo entrar na "Terra dos Vivos".

Os escribas da Antiguidade escreveram muitos relatos épicos sobre esse homem incomum, dizendo:

Coisas secretas ele viu;
O que está escondido do homem ele viu.
Ele até trouxe notícias dos tempos antes do dilúvio;
Ele fez a longa viagem, fatigante e difícil.
Regressou e, numa coluna de pedra, gravou sua labuta.

Desse antiqüíssimo conto sumério, só chegaram a nós menos de duzentas linhas. No entanto, conhecemos toda a história com base nas traduções feitas para todas as línguas de povos que se seguiram aos sumérios no Oriente Médio: assírios, babilônios, hititas e horreus. Todos contaram e recontaram essas lendas. As tábulas de argila onde foram registradas essas versões posteriores, algumas encontradas intactas, outras danificadas e muitas fragmentadas, prejudicando a leitura, depois de estudos que consumiram quase um século de trabalho, conseguem recompor o relato.

O núcleo básico de nosso conhecimento dessa lenda são doze tábulas em acadiano, que faziam parte da biblioteca de Assurbanipal em Nínive. Quem primeiro as trouxe à luz foi George Smith, cujo trabalho no Museu Britânico era selecionar, combinar e classificar os milhares de placas e fragmentos que chegavam ao museu vindos das escavações na Mesopotâmia. Num certo dia, sua atenção foi atraída para um pedaço de inscrição que parecia relatar a história do dilúvio. Estudando-a mais atentamente, Smith viu que não havia dúvidas:

os caracteres cuneiformes, vindos da Assíria, contavam a história de um rei que procurara o herói do dilúvio e ouvira dele um relato em primeira pessoa do evento!

Com um entusiasmo bem compreensível, os diretores do museu enviaram George Smith ao sítio arqueológico específico para procurar os fragmentos que faltavam. Contando com uma boa dose de sorte, Smith encontrou-os em número suficiente para reconstruir o texto e adivinhar a seqüência correta das tábulas. Em 1876, ele mostrou, de maneira conclusiva, a seqüência, e publicou um livro sobre o assunto, The Chaldean Account of the Flood. (O Relato Caldeu Sobre o Dilúvio). Pelo estilo dos textos, Smith concluiu que eles tinham sido "compostos na Babilônia a cerca de 2000 a.C.

De início, George Smith leu o nome do rei que procurou Noé como Izdubur e sugeriu que ele não devia ser outro senão o herói-rei bíblico Nemrod. Por algum tempo os estudiosos aceitaram essa idéia e referiam-se a esse conjunto de doze tábulas como "A Epopéia de Nemrod". No entanto, novas descobertas e pesquisas posteriores estabeleceram a origem suméria da lenda e o verdadeiro nome do herói da história: GIL.GA.MESH. Confirmou-se a partir de outros textos históricos, inclusive as Listas de Reis Sumérios, que esse homem fora governante de Uruk - a Arac da Bíblia por volta de 2.900 a.C. A Epopéia de Gilgamesh, como essa obra literária da Antiguidade atualmente é chamada, nos leva para quase 5 mil anos atrás.

É preciso conhecer a história da cidade de Uruk para captar a abrangência dramática da epopéia. Confirmando as narrativas bíblicas, os registros históricos da Suméria também relatavam que, depois do dilúvio, a realeza - dinastias reais - começou em Kish e daí foi transferida para Uruk em resultado das ambições de Irnini/Ishtar, que não gostava de seus domínios distantes da Suméria.

De início, Uruk era apenas a localização de um recinto sagrado, onde ficava uma Morada (templo) de An, o "Senhor do Céu", construída no alto de um enorme zigurate chamado E.AN.NA ("Casa de An”). Em suas raras visitas à Terra, An acabou desenvolvendo um carinho especial por Irnini e concedeu-lhe o título de IN.AN.NA - a "Amada de An" (mexericos muito antigos insinuam que esse amor não era meramente platônico) -, instalando-a no Eanna, que antes permanecia sempre desocupado.

Mas adiantava para Inanna ter uma cidade sem habitantes, um reino sem súditos? Não muito longe dali, ao sul, nas margens do golfo Pérsico, Ea vivia em semi-isolamento na cidade de Eridu, onde mantinha-se a par dos assuntos humanos, dispensando conhecimento e civilização à Humanidade. Sedutora e perfumada, Inanna fez uma visita a Ea, seu tio-avô. Embriagado e apaixonado, ele atendeu aos desejos da sobrinha: tornar Uruk o novo centro da civilização suméria, a sede da monarquia, em substituição a Kish.

Para levar a cabo seus planos grandiosos, cujo objetivo final era sua entrada no Círculo Interno dos Grandes Doze Deuses, Inanna/Ishtar procurou o apoio de seu irmão, Utu/Shamash. Enquanto nos dias antes do dilúvio a miscigenação entre os Nefilim e as filhas dos homens causava a ira dos deuses, a prática já não era reprovada.
Tanto é que o alto sacerdote do templo na época era um filho de Shamash com uma humana. Então, Inanna e Shamash o ungiram como rei de Uruk, dando início à primeira dinastia de reis-sacerdotes do mundo. Segundo a Lista de Reis Sumérios, ele reinou por 324 anos. Seu filho, "que construiu Uruk", governou 420 anos. Quando Gilgamesh, o quinto monarca dessa dinastia, subiu ao trono, Uruk já era um centro florescente, que dominava seus vizinhos e comerciava com terras distantes.

Sendo descendente do grande deus Shamash por parte de pai, e filho da deusa NIN.SUN, Gilgamesh era considerado "dois terços deus, um terço humano". Por isso, recebera o privilégio de ter seu nome escrito com o prefixo "divino".

 Orgulhoso e autoconfiante, Gilgamesh começou seu reinado como um soberano benevolente e consciencioso, envolvido nas costumeiras tarefas de fortalecer as muralhas da cidade ou embelezar o recinto do templo. Porém, quanto mais aprendia sobre a história dos deuses e homens, mais se tornava pensativo e inquieto. Mesmo durante os momentos de diversão, seus pensamentos se voltavam para a morte. Ele viveria tanto como seus ancestrais semi-divinos em virtude de ser dois terços deus, ou o terço humano prevaleceria, determinando-lhe o tempo de vida de um mortal?

Logo Gilgamesh confessou sua ansiedade a Shamash:

Em minha cidade o homem morre; oprimido está meu coração.
O homem perece; pesado está meu coração.
O homem, por mais alto que seja, não pode estender-se até o Céu;
O homem, por mais largo que seja, não pode cobrir a Terra.

"Conseguirei olhar por cima da parede?", perguntou a Shamash. "Será esse também meu destino?” Evitando dar uma resposta direta - talvez por ele mesmo não sabê-la -, Shamash tentou fazer Gilgamesh aceitar sua sina, fosse qual fosse, e gozar a vida enquanto podia:
 
Quando os deuses criaram a Humanidade,
A aquinhoaram com a morte.
A vida retiveram para si.
 
Portanto, prosseguiu:

Que fique cheia tua barriga, Gilgamesh.
Festeja dia e noite!
De cada dia faze uma festa de regozijo.
Dia e noite canta e dança!
Que tuas vestes estejam sempre imaculadas,
Lava a cabeça; banha-te em água.
Dá atenção ao pequeno que pega tua mão,
Deixa tua esposa deliciar-se em teu colo;
Pois este é o destino da Humanidade.

Mas Gilgamesh recusou-se a aceitar sua sina. Afinal, não era dois terços divino e só um terço humano? Por que a parte mortal, menor, e não o elemento divino deveria determinar seu destino? Andando de um lado para o outro durante o dia e inquieto à noite, Gilgamesh tentou manter-se jovem intrometendo-se na vida de recém-casados, insistindo em manter relações sexuais com a noiva antes do marido. Então, uma noite, teve uma visão que sentiu ser um presságio. Correu para a mãe e relatou-lhe o que acontecera, pedindo-lhe que interpretasse a visão:
Minha mãe,
Durante a noite, tendo ficado excitado,
Vaguei de um lado para o outro.
No meio (da noite) surgiram presságios.
Uma estrela tornou-se cada vez maior no céu.
O artesanato de Anu desceu em minha direção!
O artesanato de Anu desceu em minha direção! 

"O artesanato de Anu" que desceu dos céus caiu na Terra perto de Gilgamesh. Ele continuou a relatar:

Tentei levantá-lo; era pesado demais para mim.
Procurei sacudi-lo;
Não consegui movê-lo ou erguê-lo.

Enquanto tentava soltar o objeto, que deve ter se enterrado profundamente no solo, "o populacho atirou-se sobre ele, os nobres o cercaram". A queda do "artesanato de Anu" aparentemente foi observada por muita gente, pois "toda Uruk juntou-se em torno dele".

Os "heróis" - os homens fortes - ajudaram o rei em seus esforços para deslocar o objeto. "Os heróis o pegaram por baixo e eu puxei-o pela parte dianteira.

Embora o objeto não esteja completamente descrito nos textos, com toda a certeza não era um meteoro qualquer, mas um objeto manufaturado, digno de ser chamado de artesanato do grande Anu. Tudo indica que o leitor antigo não necessitava de maiores elaborações por estar familiarizado com o termo ou com o desenho do objeto, talvez algo como está mostrado num antigo selo cilíndrico real.

O texto de Gilgamesh descreve a parte inferior, que foi agarrada pelos heróis, usando um termo que pode ser traduzido por "pernas". Todavia, o objeto tinha também outras partes bem destacadas e podia-se até entrar nele, como fica claro pela continuação do relato de Gilgamesh sobre os eventos daquela noite:

Apertei com força a parte de cima.
Não consegui retirar a tampa nem levantar o Ascensor...
Com um fogo destruidor, no topo eu o rompi e entrei em suas profundezas.
Levantei a parte móvel
Aquela que Puxa para a Frente
E trouxe-a para ti.

Gilgamesh estava certo de que o aparecimento do objeto era um presságio dos deuses sobre seu destino. Sua mãe, a deusa Ninsun, contudo, teve de desapontá-lo. O que desceu do céu como uma estrela, falou, prevê a chegada de "um robusto camarada que salva; um amigo que virá para ti... ele é o mais poderoso da região... jamais te abandonará. Esse é o significado de tua visão".

Ninsun sabia do que estava falando pois, sem o conhecimento do filho e atendendo às súplicas do povo de Uruk para que se fizesse algo capaz de divertir o inquieto rei, os deuses arranjaram um homem selvagem para entrar na cidade e se engalfinhar em lutas com Gilgamesh. Seu nome era ENKI.DU - "A Criatura de Enki" -, um tipo de homem da Idade da Pedra que vivia nos territórios inóspitos, entre os animais. "Ele tinha o hábito de sugar o leite de criaturas selvagens." Esse homem costumava ser retratado nu, barbado e cabeludo, em geral acompanhado de seus amigos animais.

Desejando domesticá-lo, os nobres de Uruk contrataram uma prostituta. Enkidu, que até então só conhecera a companhia de animais, readquiriu seu elemento humano ao fazer amor com a mulher várias vezes. Depois disso, a prostituta levou-o para um acampamento na periferia da cidade, onde lhe foram ensinados a língua, as maneiras de Uruk e hábitos do rei. "Contenha Gilgamesh, seja um adversário a sua altura!", disseram os nobres a Enkidu.
O primeiro encontro entre os dois homens aconteceu à noite, quando Gilgamesh, tendo deixado o palácio, vagava pelas ruas à procura de aventuras sexuais. Enkidu enfrentou-o, barrando seu caminho. "Eles se atracaram, firmes como touros." Paredes estremeceram, batentes desmoronaram, enquanto os dois lutaram. Finalmente, "Gilgamesh dobrou o joelho e a luta terminou. Ele perdeu para o estranho". "Aplacada sua fúria, Gilgamesh virou de costas." Nesse momento, Enkidu dirigiu-se a ele e o rei recordou-se das palavras de sua mãe. Então esse homem era seu novo "amigo robusto". "Eles se beijaram e estabeleceram uma amizade.

À medida que os dois se tornavam amigos inseparáveis, Gilgamesh revelou a Enkidu seu temor do destino de um mortal.

Ao ouvir isso, "os olhos de Enkidu encheram-se de lágrimas, enfermo ficou seu coração, amargurado suspirou". Depois, disse ao amigo que havia um jeito de ele esquivar-se de sua sina, forçando sua entrada na Morada dos Deuses. Lá, se Shamash e Adad o apoiassem, os deuses poderiam lhe dar a condição de divindade a que tinha direito.

A "Morada dos Deuses", contou Emkidu, ficava na "Montanha dos Cedros". Ele a descobrira por acaso, contou, enquanto vagava pelos territórios inóspitos com seus amigos animais. O local, contudo, era guardado por um terrível monstro chamado Huwawa:

Eu a descobri, meu amigo, nas montanhas,
Enquanto vagava com os animais selvagens.
Por muitas léguas ela se estende na floresta;
Eu entrei nela.
Huwawa (está lá); seu rugido é como uma inundação,
Sua boca é fogo, seu hálito é morte...
O vigia da Floresta de Cedros, o Guerreiro Flamejante,
É poderoso, jamais descansa...
Designou-o Enlil para manter a Floresta de Cedros
Um terror para os mortais.

O fato de a principal tarefa de Huwawa ser impedir os mortais de entrar na Floresta de Cedros só espicaçou a determinação de Gilgamesh de ir àquele lugar. Com toda a certeza era lá que conseguiria se juntar aos deuses e escapar de sua sina de mortal.

Quem, meu amigo, pode escalar o céu?
Só os deuses, indo ao lugar subterrâneo de Shamash.
Os dias da Humanidade são numerados, nada alcançaram senão o vento.
Mesmo tu tens medo da morte, apesar de teu poder heróico.
Portanto, deixe-me ir a tua frente, que tua boca me diga:
"Avança, não tema!”

O plano era este: irem "ao lugar subterrâneo de Shamash", na Montanha dos Cedros, para conseguirem "escalar o céu", como fazem os deuses. Mesmo o mais alto dos homens, como salientava Gilgamesh antes, "não consegue estender-se até o céu". Mas agora ele pelo menos sabia onde ficava o lugar do qual o céu podia ser escalado. Então caiu de joelhos e rezou a Shamash: "Deixe-me ir, oh, Shamash! Minhas mãos estão erguidas em oração... ao Local de Aterrissagem, dê a ordem... Cubra-me com tua proteção!

Infelizmente, a tábula que contém o texto em questão está quebrada e perderam-se as linhas que contêm a resposta do deus. Todavia, ficamos sabendo que "quando Gilgamesh examinou seu presságio... lágrimas escorreram pelo seu rosto". Aparentemente ele recebeu permissão de ir em frente - mas por sua conta e risco. Gilgamesh decidiu prosseguir e lutar contra Huwawa sem o auxílio do deus. "Se eu fracassar", disse, "o povo se lembrará de mim. Gilgamesh, dirão, tombou lutando com o feroz Huwawa." E continuou: "Mas, se eu tiver êxito, obterei um Shem, "o veículo com o qual se atinge a eternidade".

Enquanto Gilgamesh ordenava a produção de armas especiais para lutar contra Huwawa, os conselheiros de Uruk tentaram dissuadi-lo da empreitada. "Ainda és jovem, Gilgamesh", por que se arriscar a encontrar a morte numa aventura imprevisível, "onde não sabes o que conseguirás?" Reunindo todas as informações disponíveis sobre a Floresta de Cedros e seu guardião, alertaram o rei:

Ouvimos que Huwawa tem uma constituição impressionante.
Quem é capaz de enfrentar suas armas?
Desigual é a luta com a máquina de sitiar, Huwawa.

Mas Gilgamesh só "olhou a sua volta, sorrindo para seu amigo". Os boatos de que Huwawa era um monstro mecânico, "uma máquina de sitiar", só serviram para aumentar sua crença de que ele seria facilmente controlado pelas ordens dos deuses Shamash e Adad. Porém, como não obtivera de Shamash uma clara promessa de auxílio, decidiu recorrer a sua mãe: "De mãos dadas, Gilgamesh e Enkidu foram ao Grande Palácio, à presença de Ninsun, a grande rainha. Gilgamesh adiantou-se ao entrar no palácio: Oh, Ninsun... decidi fazer uma longa viagem ao lugar de Huwawa; uma batalha incerta irei enfrentar; trilhas desconhecidas percorrerei. Oh, mãe, ore a Shamash por mim?

Atendendo ao pedido, "Ninsun entrou em sua câmara, vestiu o traje que assenta em seu corpo, o adorno que assenta em seu colo... pôs a tiara". Em seguida, ergueu as mãos em prece para Shamash - e colocou todo o ônus da aventura sobre ele: "Por que, tendo me dado Gilgamesh como filho", disse, falando retoricamente, "tu o dotaste de um coração inquieto? E agora tu o influenciaste a empreender uma longa jornada, ao lugar de Huwawa!" Dito isso, Ninsum pediu a proteção do deus para o filho:

Até ele atingir a Floresta de Cedros.
Até ele matar o feroz Huwawa.
Até o dia em que for e voltar.

Quando a população da cidade soube que seu rei iria mesmo ao Local de Aterrissagem, "aproximou-se dele", desejando-lhe sucesso. Os conselheiros foram mais práticos: "Deixa Enkidu entrar a tua frente; ele conhece o caminho... na floresta, que ele penetre nas trilhas de Huwawa... o que vai à frente, salva teu companheiro!" Eles também invocaram as bênçãos de Shamash. "Que Shamash te conceda teu desejo; o que tua boca falou, que ele mostre aos teus olhos; que ele abra para ti o caminho barrado, a estrada revele para teus passos, a montanha descerre para teus pés!

Ninsun disse algumas palavras de despedida. Virando-se para Enkidu, pediu-lhe para proteger Gilgamesh: "embora não tenhas saído de meu ventre, aqui te adoto pata guardares o rei como teu irmão!" Em seguida, colocou seu emblema no pescoço de Enkidu.

E os dois amigos partiram para sua perigosa aventura.

A quarta tábula da Epopéia de Gilgamesh é dedicada à jornada dos dois amigos pela Floresta de Cedros. Infelizmente ela está tão quebrada que, apesar da descoberta de fragmentos paralelos em língua hitita, é impossível montar-se um relato coerente.

Está claro, todavia, que eles viajaram por muito tempo, dirigindo-se para oeste. De tempos em tempos, Enkidu tentava persuadir Gilgamesh a desistir da empreitada. Huwawa, ele falou, pode ouvir uma vaca caminhando a 60 léguas de distância. Sua "rede" alcança longe; seu rugido reverbera do "Lugar Onde é Feita a Subida" até Nippur. Uma fraqueza se apodera de quem se aproxima dos portões da floresta. "Voltemos", rogou; mas o rei estava irredutível.

À montanha verde os dois chegaram.
Suas palavras foram silenciadas.
Eles se imobilizaram.
Parados, contemplaram a floresta;
Olharam a altura dos cedros,
Olharam a entrada da floresta.
Onde Huwawa costumava se mover, retas eram as pegadas, um canal flamejante.
Eles contemplaram a Montanha dos Cedros,
Morada dos Deuses,
A Encruzilhada de Ishtar.

Impressionados e cansados, os dois deitaram-se para dormir. No meio da noite, acordaram. "Tu me despertaste?", perguntou Gilgamesh a Enkidu, que prontamente negou. Nem bem tinham voltado a dormir quando Gilgamesh de novo acordou o amigo. Vira algo espantoso, afirmou, embora não tivesse certeza se estava dormindo ou desperto:
Em minha visão, meu amigo,
O solo alto desmoronou.
Atirou-me ao chão, prendeu meus pés...
O olhar era dominador!
Um homem surgiu;
O mais belo do país era ele...
Tirou-me de sob o solo desbarrancado.
Deu-me água para beber; meu coração se aquietou.
No chão colocou meus pés.

Quem seria esse "homem" - "o mais belo do país" - que tirou Gilgamesh de sob o solo desbarrancado? O que seria aquele "olhar dominador" que acompanhara o deslizamento do talude? Enkidu não encontrou respostas. Cansado, virou-se e adormeceu. Porém, mais uma vez a tranqüilidade da noite foi perturbada.

No meio da vigília, o sono de Gilgamesh terminou.
Ele levantou-se, dizendo ao amigo:
Amigo, tu me chamaste?
Por que estou desperto?
Não me tocaste?
Por que estou tão assustado?
Algum deus passou por aqui?
Por que tenho a carne entorpecida?

Negando que acordara Gilgamesh, Enkidu deixou-o convencido de que "um deus passara por ali". Intrigados, os dois adormeceram, só para serem novamente acordados. E foi assim que Gilgamesh descreveu o que viu:

A visão que tive foi espantosa!
Os céus gritaram, a terra rugiu.
Embora o alvorecer se aproximasse, veio a escuridão.
Relâmpagos cintilaram, uma chama se ergueu.
As nuvens se avolumaram; choveu morte!
Então o fulgor desapareceu; o fogo apagou.
E tudo o que caíra transformou-se em cinzas.

Gilgamesh deve ter se dado conta de que testemunhara a subida de uma "Câmara Celestial": o solo estremecendo com a ignição e o rugido dos motores; as nuvens de pó e fumaça envolvendo a área, escurecendo o céu da madrugada; o brilho do fogo das turbinas visto através das nuvens espessas; e - enquanto a nave subia - seu fulgor desaparecendo. Sem dúvida nenhuma, "uma visão espantosa!" No entanto ela só serviu para encorajar Gilgamesh a prosseguir, pois confirmava que de fato eles tinham alcançado o Local de Aterrissagem.

Pela manhã, os dois amigos tentaram penetrar na floresta, tomando cuidado para evitar "as árvores-arma que matam". Enkidu encontrou o portão do qual falara. Mas, ao tentar abri-lo, foi atirado para trás por uma força invisível, que o deixou paralisado durante dez dias.

Quando voltou a se mexer e falar, Enkidu rogou a Gilgamesh: "Não entremos no coração da floresta". Este, contudo, tinha boas notícias para o amigo. Enquanto ele dormia, recuperando-se do choque, encontrara um túnel. Pelos sons que ouvira dentro dele, tinha certeza de que estava ligado ao "recinto onde são dadas as palavras de comando". Então disse a Enkidu: "Venha, não fique aí parado, meu amigo, desçamos juntos!

Gilgamesh devia estar certo, pois os textos sumérios afirmam que:

Penetrando na floresta,
A morada secreta dos Anunnaki ele abriu.

A entrada do túnel estava coberta (ou escondida) pela vegetação e bloqueada com terra e pedras. "Enquanto Gilgamesh cortava as árvores, Enkidu cavava." Porém, mal os dois conseguiram fazer uma pequena abertura, o terror atacou: "Huwawa ouviu o barulho e se encolerizou". O monstro surgiu em cena, procurando os intrusos. Sua aparência "era poderosa, ele tinha os dentes de um dragão; sua cara era de leão; sua chegada foi como uma inundação se aproximando". Mais assustador era seu "raio brilhante", que, emanando da cabeça do monstro, "devorava árvores e mato". De sua força mortal, "ninguém escapava". Um selo cilíndrico sumério nos mostra um rei qualquer, Gilgamesh e Enkidu ao lado de um robô mecânico, sem dúvida o "Monstro com Raios Mortais" da epopéia.


Parece, pelos fragmentos de texto, que Huwawa conseguia se armar com "sete capas". Mas, quando chegou à cena, "só uma ele vestia". Vendo nisso sua oportunidade, os dois amigos tentaram preparar-lhe uma armadilha. Quando o monstro virou-se para enfrentar os intrusos, o raio mortal que lhe saía da cabeça desenhou uma trilha de destruição.

No momento oportuno, chegou socorro dos céus. Vendo a situação em que se encontravam os dois amigos, "dos céus falou o divino Shamash". Avisando-os para não tentarem fugir, aconselhou: "cheguem bem perto de Huwawa". Então o deus convocou uma hoste de ventos rodopiantes "que bateram nos olhos de Huwawa" c neutralizaram seu raio. Como Shamash pretendia,

  • "Os raios desapareceram, o brilho toldou-se.
  • Logo o monstro estava imobilizado: "ele não conseguia ir nem para a frente nem para trás".
  • Foi então que Gilgamesh e Enkidu o atacaram: Enkidu golpeou o guardião, Huwawa, fazendo-o cair ao chão.
  • Os cedros ao longo de uma distância de 2 léguas estremeceram,
  • tão fragorosa foi a queda do monstro. Então Enkidu "matou-o".

Alegres com a vitória, mas exaustos da batalha, os dois camaradas pararam para descansar à beira de um riacho. Gilgamesh despiu-se para se lavar. "Ele atirou longe suas coisas sujas, vestiu as limpas; enrolou no corpo uma túnica franjada, amarrada com uma faixa." Não havia motivo para pressa; o caminho para a "Morada secreta dos Anunnaki" já não estava bloqueado.

Mal sabia Gilgamesh que o desejo de uma mulher logo faria sua vitória desmoronar...

Aquele lugar, como esclarecido anteriormente na epopéia, era "A Encruzilhada de Ishtar"; a deusa costumava usar esse Local de Aterrissagem. Ela, como Shamash, devia ter assistido à batalha talvez de sua Câmara Celestial ("alada"), como mostrado num selo hitita. Vendo Gilgamesh despir-se e banhar-se, "Ishtar levantou os olhos para a beleza de Gilgamesh".


Aproximando-se do rei, ela não mediu palavras para expressar o que lhe passava pela mente:

Venha, Gilgamesh, seja meu amante!
Conceda-me o fruto de teu amor.
 
Tu serás meu homem, Serei tua mulher!

Prometendo carros de ouro, um palácio magnífico, soberania sobre outros reis e príncipes, Ishtar estava certa de que seduzira Gilgamesh. Todavia, ao responder, ele salientou que não tinha nada para oferecer em troca dos favores de uma deusa. E, quanto ao "amor" de Ishtar; qual seria sua duração? Mais cedo ou mais tarde, falou, ela se livraria dele "como um sapato que aperta o pé de seu dono".

Recitando a lista dos homens com quem Ishtar se deitara, Gilgamesh recusou seus favores. Furiosa com a ofensa, a deusa pediu a Anu para mandar o "Touro do Céu" para esmagar o rei.

Atacados pelo Monstro Celeste, Gilgamesh e Enkidu esqueceram-se do objetivo de sua missão e correram para se salvar. Ajudando-os a fugir na direção de Uruk, Shamash permitiu que "cobrissem a distância de um mês e quinze dias em apenas três dias". Porém, na periferia da cidade, à beira do rio Eufrates, o "Touro do Céu" os alcançou. Quando ele "resfolegou", dois fossos abriram-se no solo, grandes bastante para conter duzentos homens cada. Enkidu caiu num deles, mas conseguiu saltar para fora e matou o monstro.

Não se sabe ao certo o que era o "Touro do Céu". O termo sumério - GUD.AN.NA - também podia significar "o atacante de Anu", ou seja, seu míssil cruzador. Os artistas da Antiguidade, fascinados com o episódio, freqüentemente retratavam Gilgamesh ou Enkidu lutando com um touro de verdade, com Ishtar (e às vezes Adad) assistindo. Mas, a partir do texto da epopéia, fica claro que a arma de Anu era um engenho mecânico, feito de metal e equipado com duas pinças (os "chifres"), que, segundo a descrição, eram "fundidos de trinta minas de lápis-lazúli, cada um deles com um revestimento com dois dedos de espessura".

Alguns desenhos mostram um "touro" mecânico desse tipo descendo dos céus.
Derrotado o Touro do Céu, Gilgamesh
  • "chamou os artífices, os armeiros", para ver o monstro mecânico e desmontá-lo. Então, triunfantes, ele e Enkidu foram prestar homenagem a Shamash.

Mas, "Ishtar, em sua morada, emitiu um grito de lamentação". Enquanto, no palácio, Gilgamesh e Enkidu descansavam dos festejos que tinham durado a noite toda, os deuses supremos, na Morada dos Deuses, consideravam as queixas de Ishtar. "E Anu disse a Enlil: como o Touro do Céu eles mataram e Huwawa também mataram, ambos devem morrer." Enlil, porém, contestou: "Enkidu deverá morrer, Gilgamesh não". Então Shamash interveio. Afinal, ele contribuíra para os acontecimentos. Por que "Enkidu, o inocente, deveria morrer?

Enquanto os deuses deliberavam, Enkidu foi acometido de um coma. Aflito e preocupado, Gilgamesh "andava de um lado para o outro diante do divã" onde seu amigo jazia, imóvel. Lágrimas amargas escorriam-lhe pelas faces. No entanto, apesar da tristeza que sentia pelo companheiro, seus pensamentos só giravam em torno de sua constante ansiedade. Um dia, tal como Enkidu, ele também ficaria à beira da morte? Depois de tantos esforços, teria o fim de um mortal qualquer?

Na assembléia, os deuses chegaram a um consenso. A sentença de morte imposta a Enkidu foi comutada para trabalhos forçados nas minas, onde ele passaria o resto de seus dias. Para executar a sentença, levando-o para seu novo domicílio, dois emissários "vestidos de pássaros, usando asas como traje", viriam procurá-lo. Um deles, "um jovem cujo rosto é escuro e parece um homem-pássaro no semblante", o transportaria à Terra das Minas:

Ele estará vestido como uma águia.
Pelo braço te conduzirá.
"Siga-me" (dirá); ele te levará
À Casa da Escuridão.
À morada acima do solo;
À morada onde os que entram jamais saem.
Uma estrada da qual não existe volta;
Uma casa cujos moradores são privados de luz,
Onde têm poeira na boca
E barro é seu alimento.

Um selo cilíndrico ilustra a cena, mostrando um emissário alado ("anjo") levando Enkidu pelo braço.
Ouvindo a sentença dada ao seu amigo, Gilgamesh teve uma idéia. Não muito longe da Terra das Minas, tinham-lhe informado, ficava a Terra dos Vivos, um lugar para o qual os deuses levavam os humanos que recebiam a dádiva da eterna juventude.
Esse local era a "morada dos antepassados" ungidos pelos deuses com as Águas Purificadoras. Lá, compartilhando da comida e bebida dos deuses, residiam:

 

Príncipes reais que tinham governado nos tempos de antanho;
Como Anu e Enlil, eles são servidos de carnes temperadas,
De odres, água fresca lhes é servida.

Não seria esse o lugar para onde fora levado o herói do dilúvio - Ziusudra/Utnapishtim-, de onde Etana "ascendera ao céu"?

E assim foi que "o senhor Gilgamesh decidiu partir para a Terra dos Vivos". Anunciando a Enkidu, agora recuperado, que o acompanharia em pelo menos parte da viagem, explicou:

Oh, Enkidu,
Mesmo os poderosos fenecem, encontram o fim fatídico.
(Portanto) nessa terra entrarei,
Montarei meu Shem.
No lugar onde os Shem têm sido erigidos,
Eu um Shem erigirei.

No entanto, passar a Terra das Minas para a Terra dos Vivos não era uma questão para ser resolvida por um mortal. Com palavras fortes, Gilgamesh foi aconselhado pelos anciãos de Uruk e sua mãe, a deusa Ninsun, a primeiro obter a permissão de Utu/Shamash:

Se na terra desejas entrar,
Avisa Utu, avisa Utu, o herói Utu!
Ele é o encarregado da terra;
A terra alinhada com os cedros é governada por Utu.
Avisa Utu!

Assim alertado, Gilgamesh ofereceu um sacrifício a Utu e suplicou seu consentimento e proteção:

Oh, Utu,
Na terra desejo entrar;
Seja meu aliado!
Na terra que se alinha com os frescos cedros
Desejo entrar, seja meu aliado!
Nos lugares onde os Shem foram erigidos,
Que eu erija meu Shem!

De início, Utu/Shamash duvidou se Gilgamesh conseguiria qualificar-se para entrar naquela região. Depois, atendendo a novas preces e súplicas, avisou o rei que ele teria de percorrer uma região seca e desolada:
  • "a poeira das encruzilhadas será teu domicílio, o deserto será tua cama... espinhos e gravetos esfolarão teus pés... a sede assolará tuas bochechas".
Tentando fazer seu protegido desistir da empreitada, o deus contou-lhe que "o lugar onde os Shem têm sido erigidos" era cercado por sete montanhas e os desfiladeiros entre elas ficavam guardados por "Poderosos", que podiam lançar "um fogo chamuscante" ou um "raio que não pode ser recuado". Todavia, no final, Utu cedeu:
  • "As lágrimas de Gilgamesh ele aceitou como oferenda; sendo misericordioso, mostrou misericórdia".
No entanto, "o senhor Gilgamesh agiu de maneira frívola". Em vez de tomar o difícil caminho terrestre, resolveu fazer a maior parte da viagem numa confortável embarcação. Quando chegassem ao porto distante, Enkidu iria para a Terra das Minas e ele se dirigiria para a Terra dos Vivos. Então escolheu cinqüenta homens jovens e sem compromissos familiares para o acompanharem e serem os remadores. Sua primeira tarefa foi cortarem e levarem para Uruk as madeiras especiais com as quais seria construído o MA.GAN – uma "galera do Egito". Os ferreiros da cidade fizeram armas poderosas. Quando tudo ficou pronto, os aventureiros partiram.

Segundo os relatos, eles navegaram descendo o golfo Pérsico, sem dúvida pretendendo dar a volta na península Arábica e depois subir pelo mar Vermelho até o Egito. Todavia, a ira de Enlil não demorou a cair sobre eles. Afinal, Enkidu não fora avisado que um homem "anjo" o pegaria pelo braço para conduzi-lo à Terra das Minas? Como então estava navegando com o irrequieto Gilgamesh numa galera real, acompanhado de cinqüenta homens armados?

Ao entardecer, Utu - que deve ter assistido com grande preocupação à partida dos dois amigos - "foi embora de cabeça erguida". As montanhas ao longo da costa distante "tornaram-se escuras, sombras espalharam-se sobre elas". Então, "parado ao lado da montanha", havia alguém que, como Huwawa, podia emitir raios "dos quais nada escapava": "Ele parecia um touro da grande casa da Terra". Tudo indica que se tratava de uma torre de vigia. Esse "touro" ou vigia assustador deve ter interpelado o barco e seus passageiros, pois Enkidu foi tomado pelo medo. Voltemos para Uruk, suplicou. Mas Gilgamesh não lhe deu atenção. Mandou que o barco fosse dirigido para a terra, determinado a lutar com o vigia - "aquele homem, se for um homem, ou deus, se for um deus".

Nesse instante, houve uma calamidade. O "tecido de trama tripla" - a vela - rasgou. Como que empurrada por uma mão invisível, a galera virou e logo afundou. Gilgamesh e Enkidu conseguiram nadar até a praia. Ao olharem para o mar, viram a embarcação naufragada com a tripulação ainda em seus postos, os cinqüenta homens parecendo incrivelmente vivos na morte:

Depois de ele ter afundado, no mar ter afundado,
No fim de tarde em que o barco Magan tinha afundado,
Depois de o barco, cujo destino era Magan, ter afundado,
Dentro dele, como ainda criaturas vivas,
Estavam sentados aqueles nascidos de um ventre.

Os dois amigos passaram a noite na praia desconhecida discutindo sobre que caminho deveriam tomar. Gilgamesh continuava determinado a atingir a "terra". Enkidu achou melhor voltarem à "cidade" - Uruk. Logo, porém, Enkidu foi tomado de fraqueza. Gilgamesh exortou-o a agarrar-se à vida. "Meu querido e débil amigo", chamou-o carinhosamente, "eu o levarei para a terra". No entanto, "a morte, que não faz distinções", não pôde ser evitada.

Gilgamesh lamentou a perda do amigo por sete dias e sete noites, "até que um verme saiu de seu nariz". De início, começou a andar sem rumo:
  • "Por seu amigo, Enkidu, Gilgamesh chora amargamente enquanto vagueia pelo mato... com tristeza na barriga, temendo a morte, vagou pelo mato".
De novo o rei preocupava-se com seu destino - "temendo a morte" -, imaginando: "Quando eu morrer, não ficarei como Enkidu?

Então sua determinação em escapar da sina dos mortais novamente se fortaleceu.
  • "Devo descansar minha cabeça dentro da terra e dormir pelo resto dos anos?", gritou a Shamash. "Permita que meus olhos contemplem o sol, que eu me encha de luz!" Determinando seu curso pelo movimento do sol, "para a Vaca Selvagem, para Utnapishtim, filho de Ubar-Tutu, ele tomou a estrada".
Gilgamesh caminhou por trilhas virgens, sem encontrar nenhum homem, procurando comida. "Que montanhas subiu, que rios atravessou, ninguém sabe", registraram tristemente os escribas.
Depois de muito tempo, como relatam as versões da epopéia encontradas em Nínive e sítios arqueológicos hititas, Gilgamesh aproximou-se de habitações. Ele estava chegando a uma região dedicada a Sin, o pai de Shamash.
  •  "Quando atingiu um desfiladeiro durante a noite, Gilgamesh viu leões e sentiu medo.

Ele ergueu a cabeça para Sin e orou:
"Que meus passos sejam dirigidos para o lugar onde os deuses rejuvenescem...
Preserva-me!”

  • "À noite, enquanto dormia, ele acordou de um sonho" que interpretou como um presságio de Sin avisando-o de que iria "regozijar-se na Vida"; encorajado, Gilgamesh "como uma flecha desceu para o meio dos leões".
Sua batalha com as feras foi amplamente retratada não apenas na Mesopotâmia como em todos os países da Antiguidade, até mesmo no Egito.

Ao alvorecer, Gilgamesh atravessou um desfiladeiro. Lá embaixo, a distância, avistou uma grande extensão de água, como um enorme lago, "impulsionado por longos ventos". Na planície junto a esse mar interior, avistou uma cidade protegida por uma muralha. Lá ficava o templo de Sin.

No lado de fora da cidade, junto ao "mar na baixada", Gilgamesh viu uma taberna. Aproximando-se dela, encontrou "Siduri, a cervejeira", que segurava "um jarro e uma tigela de mingau dourado". Mas, ao avistar o recém-chegado, a mulher assustou-se com sua aparência.

  • Agindo de maneira bem compreensível, a cervejaria "trancou a porta, barrou o portão".
Com grande esforço, Gilgamesh convenceu-a de sua verdadeira identidade e boas intenções, contando-lhe sobre suas aventuras e o propósito de sua viagem.

Depois que Siduri permitiu-lhe descansar, beber e comer, Gilgamesh mostrou-se ansioso por continuar. "Qual é o melhor caminho para a Terra dos Vivos?", quis saber. Seria preciso dar a volta no mar interior para atingir as montanhas ou ele poderia encurtar a jornada, atravessando as águas?

Agora, cervejeira, qual é o caminho...
Quais são seus marcos?
Dê-me, oh, dê-me seus marcos?
Se for adequado, pelo mar eu irei;
Senão, a rota terrestre pegarei.

Acontece que a escolha não era assim tão simples, pois o mar que Gilgamesh tinha diante de si era o "mar da Morte".

A cervejeira disse a ele, Gilgamesh:
É impossível atravessar o mar, Gilgamesh.
Faz muito tempo que ninguém vem do outro lado do mar.
O valente Shamash o atravessou
Mas, não sendo Shamash, quem pode atravessá-lo?
Trabalhosa é a travessia, desolado o caminho;
Estéreis são as Águas da Morte que ele contém.
Como então, Gilgamesh, pretendes atravessar o mar?

Gilgamesh não respondeu e Siduri prosseguiu, revelando-lhe que talvez poderia haver um meio de ele atravessar as Águas da Morte:

Gilgamesh,
Existe Urshanabi, o barqueiro de Utnapishtim.
Com ele estão as coisas que flutuam,
Na mata ele recolhe as coisas que colam.
Vá, deixa-o contemplar teu rosto.
Se for adequado, contigo ele atravessará;
Senão, tu voltarás.

Seguindo as indicações da cervejeira, Gilgamesh encontrou Urshanabi, o barqueiro. Depois de um longo interrogatório, onde o rei teve de dizer quem era, como chegara até ali e aonde pretendia ir, o barqueiro considerou-o digno de seus serviços. Usando varas compridas, os dois impulsionaram a jangada pelo mar. Em três dias, "deixaram para trás o passar de um mês e quinze dias", ou seja, fizeram o trajeto que por terra levaria 45 dias.

Então Gilgamesh chegou a TIL.MUN - "A Terra dos Vivos".

"Que caminho deverei tomar agora?", perguntou Gilgamesh. Urshanabi disse-lhe que ele teria de chegar a uma montanha: "o nome da montanha é Mashu".

As indicações do barqueiro constam nas versões hititas da epopéia, encontradas em fragmentos de tábulas descobertas em Boghazkoy e outros sítios arqueológicos. A partir deles, como reunidos por Johannes Friedrich em Die hethitischen Bruchstükes des Gilgamesh-Epos, ficamos sabendo que o rei foi avisado para encontrar e seguir "um caminho regular" que levava para o "Grande Mar, que fica bem distante". Deveria procurar por duas colunas de pedra, ou "marcos", que, como garantiu Urshanabi, "ao destino sempre me trazem". Ao encontrá-las faria uma curva para alcançar uma cidade chamada Itla, dedicada ao deus que os hititas denominavam de Ullu-Yah ("O das Montanhas"). Só com a bênção desse deus ele poderia prosseguir em sua jornada.

Seguindo as indicações, Gilgamesh chegou a Itla. Teve a impressão de estar avistando o Grande Mar a distância. Nessa cidade, ele comeu, bebeu, lavou-se, tornando-se novamente apresentável, como convém a um rei. Mais uma vez Shamash veio em seu auxílio, aconselhando-o a fazer oferendas a Ulluyah. Levando

seu protegido para junto do Grande Deus, Shamash pediu-lhe: Aceite estas oferendas, "conceda-me a vida". No entanto, Kumarbi, um outro deus muito citado nas lendas hititas, foi contra: a imortalidade não pode ser concedida a Gilgamesh, disse ele.

Parece que ao se convencer de que não conseguiria um Shem, Gilgamesh pediu uma compensação. Poderia pelo menos conhecer seu antepassado, Utnapishtim? Enquanto os deuses deliberavam, ele (talvez com a conivência de Shamash?) deixou a cidade e começou a avançar para o monte Mashu, parando diariamente para oferecer sacrifícios a Ulluyah.

Depois de seis dias, chegou à montanha que, de fato, era o Lugar dos Shem.

O nome da montanha é Mashu.
À montanha de Mashu ele chegou;
Onde diariamente observava os Shem
Que iam e vinham.

As funções do monte exigiam que ele se conectasse tanto com os céus como com os Confins da Terra:

Lá no alto, à Faixa Celestial
Ele está ligado;
Embaixo, ao Mundo Inferior
Ele está ligado.

Havia um meio de se entrar no monte. No entanto, a entrada, "o portão", estava fortemente guardada.

Homens-foguete guardam seu portão,
Seu terror é espantoso, seu olhar é morte.
Seu temido farol varre as montanhas.
Eles vigiam Shamash enquanto ele sobe e desce

(Foram encontradas várias representações mostrando seres alados ou homens-touro divinos, operando um aparelho circular talvez um holofote - montado num poste. É possível que sejam ilustrações do "temido farol que varre as montanhas").

  • "Ao contemplar o brilho terrível, Gilgamesh cobriu o rosto; recobrando a compostura, aproximou-se deles."
Quando percebeu que o temível raio só afetara momentaneamente o recém-chegado, o homem-foguete gritou para seu companheiro:
  • "O que vem tem o corpo de carne dos deuses!"
Parece que os raios podiam atordoar ou matar humanos, mas eram inofensivos para os deuses.
Recebendo permissão de se aproximar, Gilgamesh foi solicitado a se identificar e explicar sua presença na área. Depois de contar sobre sua origem divina, ele disse que viera "à procura da Vida" e acrescentou que desejava conhecer seu antepassado, Utnapishtim.

Por causa de Utnapishtim, meu antepassado,
Eu vim.
A ele que se juntou à congregação dos deuses,
Sobre a vida e a morte desejo perguntar.

"Isso jamais foi conseguido por um mortal", disseram os dois guardas. Sem desanimar, Gilgamesh invocou Shamash e explicou que era dois terços divino. Devido a fraturas na tábula que contém o texto, não se sabe o que aconteceu logo em seguida. O fato é que finalmente os homens-foguete comunicaram a Gilgamesh que a permissão lhe fora concedida:
  • "O portão do monte está aberto para ti!
(O "Portão do Céu" era um motivo freqüente nos selos cilíndricos, que o mostravam como um portão alado, parecendo uma escada de mão, que levava à Árvore da Vida. Às vezes estava guardado por serpentes).


Gilgamesh entrou, seguindo "o caminho tomado por Shamash". A viagem durou doze beru (horas duplas) e durante a maior parte do percurso "ele não pôde ver nada, nem à frente nem atrás". É possível que estivesse de olhos vendados, pois o texto salienta que "para ele, não havia luz". Na oitava hora dupla, Gilgamesh gritou de medo. Na nona, "sentiu um vento norte batendo-lhe no rosto". "Quando completou onze beru, a aurora surgiu." Finalmente, terminada a 12ª. hora dupla,

Ele "na luminosidade habitou", Gilgamesh agora podia enxergar e o que viu foi impressionante: um recinto fechado, como o dos deuses onde "crescia" um jardim feito de pedras preciosas! A magnificência do local nos é transmitida por linhas mutiladas dos antigos textos:



 Como frutos ostentam cornalinas,
As vinhas belas demais para se contemplar.
A folhagem é de lápis-lazúli;
As uvas, luxuriantes demais para se olhar,
De... pedras são feitas...
Suas... de pedras brancas...
Nas águas, juncos puros... de pedras-sasu;
Como uma Árvore da Vida e uma Árvore de...
Aquela feita de pedras An-Gug.

A descrição continua longamente. Impressionado e tomado de emoção, Gilgamesh caminhou pelo jardim. Estava, sem dúvida, num "Jardim do Éden" simulado!

Até agora não se sabe o que aconteceu em seguida, pois toda uma coluna da nona tábula de argila está fragmentada demais para ser decifrada. Quer seja no jardim artificial ou em algum outro lugar, Gilgamesh finalmente encontrou-se com Utnapishtim. Sua primeira reação ao ver um "homem de antanho" foi reparar o quanto era parecido com ele:
Gilgamesh lhe disse,
A Utnapishtim, "O Longínquo":
Enquanto te contemplo, Utnapishtin,
Tu não és nada diferente;
É como se tu eu fosse...

Então, Gilgamesh foi direto ao assunto:

Diga-me,
Tu te juntaste à congregação dos deuses
Em tua busca pela Vida?

Utnapishtim respondeu: "Eu te revelarei um assunto oculto, Gilgamesh, um segredo dos deuses te contarei". O segredo era o Conto do Dilúvio, relatando como quando Utnapishtim era o governante de Suripak e os deuses resolveram deixar o dilúvio aniquilar a Humanidade, Enki secretamente o instruiu a construir uma embarcação submersível e nela colocar sua família e "a semente de todas as coisas vivas". Um navegador fornecido pelo deus dirigiu o barco para o monte Ararat. Quando a água começou a abaixar, Utnapishtim desembarcou para oferecer sacrifícios em agradecimento. Os deuses e deusas - que orbitavam a Terra em sua nave enquanto ela era inundada - também desceram no monte Ararat e saborearam a carne assada no sacrifício. Quando Enlil também aterrissou, encolerizou-se ao ver que, apesar do voto feito por todos os deuses, Enki permitira a sobrevivência da Humanidade.

Todavia, quando sua raiva diminuiu, Enlil conscientizou-se da vantagem dessa sobrevivência. Foi então, continuou contando Utnapishtim, que o deus lhe concedeu a vida eterna:
Logo em seguida, Enlil entrou no barco.
Segurando-me pela mão, levou-me a bordo.
Ele levou minha mulher a bordo e a fez ajoelhar-se ao meu lado.
Em pé entre nós, nossas testas tocou para nos abençoar:
Até aqui Utnapishtim tem sido humano;
Daqui em diante, ele e sua mulher serão como deuses para nós.
Longe daqui Utnapishtim residirá,
Na foz dos rios.

E foi assim, concluiu Utnapishtim, que ele acabou sendo levado à Morada Longínqua para viver entre os deuses. Mas como Gilgamesh conseguiria obter o mesmo privilégio? "Agora, quem, em teu favor, pedirá para os deuses reunirem-se em assembléia para que encontres a Vida que procuras?

Ao ouvir o conto e entender que só os deuses reunidos poderiam decretar-lhe a vida eterna, sem o que nada conseguiria, Gilgamesh desmaiou, perdendo a consciência por seis dias e sete noites. Utnapishtim, sarcástico, comentou com a mulher: "Veja só este herói que procura a Vida; com um mero sono, como a névoa ele se dissolve". Todavia, enquanto Gilgamesh dormia, o casal cuidou dele para mantê-lo vivo "para que possa voltar em segurança pelo caminho pelo qual veio, para que pelo portão pelo qual passou possa voltar a sua terra".

Urshanabi, o barqueiro, foi chamado para levar Gilgamesh de volta. No entanto, no último instante, quando o rei já estava para partir, Utnapishtim revelou-lhe mais um segredo: embora ele não pudesse escapar da morte, havia um meio de evitá-la. Para isso, teria de obter a planta secreta que os deuses comiam; assim, se manteria eternamente jovem!

Utnapishtim disse a ele, Gilgamesh:
Para cá viestes, enfrentando labuta e adversidade.
Que posso dar-te na volta a tua terra?
Eu te revelarei, Oh, Gilgamesh, uma coisa secreta;
Um segredo dos deuses te contarei;
Existe uma planta, que tem a raiz parecida com a do morangueiro espinhoso.
Seus espinhos são como os dos galhos da urze-branca.
Tuas mãos eles espetarão.
Se elas obtiverem a planta,
Nova Vida encontrarás.

A planta, ficamos sabendo pelo que aconteceu em seguida, crescia submersa:

Nem bem Gilgamesh ouviu isso, abriu o cano de água.
Amarrou pedras pesadas nos pés;
Elas o puxaram para o fundo;
Então ele viu a planta.
Pegou-a apesar de ela espetar suas mãos.
Cortou as pesadas pedras amarradas aos seus pés;
A segunda o lançou de volta para onde estava.

Enquanto voltava com Urshanabi, o barqueiro, Gilgamesh disse-lhe, triunfante:

Urshanabi,
Esta planta é única entre todas as plantas:
Com ela, um homem pode recuperar o pleno vigor!
Eu a levarei à cidade fortificada de Uruk,
Onde a planta será cortada e comida.
Que ela seja chamada
Homem Torna-se Jovem na Velhice!
Desta planta comerei e a minha juventude voltarei.

Um selo cilíndrico sumério de cerca de 1700 a.C., com cenas dessa epopéia, mostra (à esquerda) Gilgamesh seminu e despenteado, lutando com dois leões; à direita, ele exibe a Urshanabi a planta da eterna juventude. No centro, um deus segura uma estranha arma ou ferramenta em forma de espiral.


O destino, contudo, como aconteceu em tantos casos durante os milênios e séculos que se seguiram, interveio.

Enquanto os viajantes preparavam-se para a noite, Gilgamesh viu "um poço cujas águas eram frescas. Desceu até ele para banhar-se".

Então veio a desgraça:
  •  "Uma cobra cheirou o perfume da planta. Chegou e levou a planta embora".
Em seguida, Gilgamesh senta-se e chora,
As lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto.
Ele pega a mão de Urshanabi, o barqueiro.
Para quem minhas mãos trabalharam?
Para quem esgotei o sangue de meu coração?
Para mim não obtive a dádiva;
a uma serpente, a dádiva concedi...

Um outro selo cilíndrico sumério ilustra o trágico final da epopéia: o portão alado ao fundo, Urshanabi conduzindo o barco e Gilgamesh lutando com a serpente. Não tendo encontrado a imortalidade, ele agora é perseguido pelo anjo da morte.


E foi assim que, nas gerações que se sucederam, escribas copiaram e traduziram, poetas recitaram e contadores de história transmitiram o relato sobre a primeira busca infrutífera da imortalidade, a Epopéia de Gilgamesh.

E era assim que ela começava:
Que eu faça todo o país saber
Sobre aquele que viu o Túnel;
Sobre aquele que conhece os mares, que eu conte toda a história.
Ele visitou o... (?) também,
Os escondidos de vista, todas as coisas...
Coisas secretas ele viu, o que está escondido do homem encontrou.
Ele até trouxe notícias dos tempos antes do dilúvio.
Também fez a longa jornada, cansativa e cheia de dificuldades;
Ele voltou e, numa coluna de pedra, toda sua labuta gravou.

E assim, segundo as Listas de Reis Sumérios, foi como tudo terminou:
  • O divino Gilgamesh, cujo pai era humano, o alto sacerdote do templo, reinou por 126 anos. Ur-lugal, filho de Gilgamesh, reinou depois dele.


Fonte: A Escada para o Céu e Bibliotecapleyades

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